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Foto Divulgação do Espetáculo |
Um mosaico reunindo temas como ditadura militar (1964-1985),
contracultura, situação política brasileira, explosão dos afetos, épocas
distintas que se misturam e se confundem, a imanência do tempo, “Mercedes”,
espetáculo escrito e dirigido pelo dramaturgo Paulo Vieira, professor do curso
de teatro da UFPB e cuja trajetória nas artes é extensa e reconhecida, encerra
suas apresentações nesse fim-de-semana depois de uma temporada que obteve
sucesso expressivo, com repercussão muito positiva de crítica e público.
A peça fala sobre as vivências de cinco personagens cuja
trajetória está ligada a luta contra a ditadura: um deputado (Jorge Felix), uma
professora do ensino básico e ex-empregada doméstica (Nika Barros), uma
militante da resistência armada (Suzy Lopes), uma acadêmica (Eulina Barbosa) e
uma estudante universitária (Bárbara Hellen). Amor, paixões em ebulição, ideais
libertários, política e história são os elementos que entrelaçam as
personagens, além do fluxo de tempo e alternância dos papéis.
Em entrevista ao Direto do Microondas, o diretor Paulo
Vieira fala de como foi o processo de criação do espetáculo e de como é vê-lo
encenado.
Direto
do Microondas: Fale sobre a criação do espetáculo, como foi
pra você conceber argumento de Mercedes e trazê-la para o palco?
PAULO VIEIRA: A criação do texto veio, na verdade, à
partir de uma notícia de jornal de que uma garota tinha recebida uma herança e
dentro dessa herança havia um carro. Eu achei isso uma coisa extremamente
curiosa e pensei: “isso tem os elementos de uma história que pode ser um
romance!”. Então, comecei a escrever “Mercedes” como um romance. Mas a
dinâmica, a “pegada” da história não estava legal para um romance. [...]
Abandonei essa ideia e reelaborei numa peça de teatro, que eu queria que de
tivesse um elemento que eu chamo de randômico e ideia remete ao casual - embora
o casual em arte seja algo bastante relativo, é muito mais uma ideia do que uma
realização, no sentido de ter uma história em três tempos diferentes, em três
situações diferentes, fragmentadas e ela ir sendo recomposta ao longo do texto.
Foi com essa ideia que, uma vez com o texto pronto, fomos preparar a encenação.
Inicialmente a ideia era fazer uma divisão do palco para que o espectador
escolhesse um lado e ele só veria um lado. Então o espectador que fosse
assistir a peça num espaço “x” só veria as personagens daquele lado, daquela
história contada naquele lado. Ou seja, ele teria conhecimento do todo pela
parte. Mas, durante o processo de encenação, eu achei que isso poderia ser uma
coisa redutora do espetáculo, então, optei por fazer circular. Há uma única cena,
a cena 3, em que todos os diálogos são simultâneos, que remete para a ideia
original. Na verdade os atores pediram que tivesse esse formato a cena 3. Como
em meu processo de direção eu transfiro para os atores a solução das cenas –
evidentemente se os atores não tiverem condição de dar a solução da cena eu
mesmo vou buscar essa solução – mas sempre espero que os atores proponham a
cena. Por que? Porque do meu ponto de vista a cena é o lugar do ator, não é o
lugar do diretor.
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Foto Divulgação do Espetáculo |
Direto
do Microondas: E a escolha do elenco, foi difícil? Já tinha
alguns nomes em mente, abriu testes, como se deu esse processo?
PAULO VIEIRA: Nós tivemos o financiamento do FIC, o Fundo
de Incentivo à Cultura Augusto dos Anjos, do Governo do Estado à partir de um
projeto que eu apresentei. No projeto eu dizia que o elenco seria escolhido
preferencialmente numa oficina que eu iria oferecer com esse objetivo, porque
também eu queria trabalhar com novos atores, tentar revelar novos atores. Tanto que a Bárbara Hellen, que a faz a
Mercedes estudantes, saiu dessa oficina. Eulina, que faz a Mercedes Dra.
Mércia, é uma atriz já tem alguns anos mas ela estava muito afastada, então ela
foi pra oficina e eu a convidei para permanecer na montagem do espetáculo. Nika
Barros a mesma coisa. O Jorge Félix é que foi convidado, porque o ator que eu
tinha selecionado na oficina não me pareceu que naquele momento pudesse atender
a necessidade da encenação e aí houve essa troca pelo Jorge Félix. O único nome
fixo era o de Suzy Lopes para quem eu havia escrito a personagem da Mercedes
revolucionária e que está comigo na assistência de direção e na produção do
espetáculo. Os outros seriam nomes que eu iria buscar preferencialmente dentro
dessa oficina que, de fato, aconteceu.
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Foto Divulgação do Espetáculo |
Direto
do Microondas: As referências históricas e culturais que
aparecem na peça são também um dos pontos altos. Como foi construir isso no
texto, teve de pesquisar muito, trouxe lembranças pessoais da época?
PAULO VIEIRA: Basicamente as minhas lembranças. Eu era
uma criança ainda quando houve o golpe militar em 1964 e a minha adolescência
nos anos 70, foi sob o período mais duro da ditadura e eu próprio era um cara
que tinha uma militância, mas uma militância muito discreta no movimento
estudantil, extremamente discreta, por sinal. Eu era muito mais um simpatizante
do que um ativista, mais voltado para a contracultura e o movimento hippie. Eu
peguei estrada, isso era uma coisa que os garotos da minha idade que tinham
simpatias pela contracultura faziam e eu fiz. Acampavam em praias desertas que
hoje já não são mais, são verdadeiras cidades. [...] Tinha todo esse idílio do
amor e da paz universal que, na verdade, foi a grande contribuição - do meu
ponto de vista – da contracultura no sentido de uma paz social. Afora isso a
contracultura produziu coisas muito interessantes nas artes. Então, isso veio
das minhas lembranças pessoais, evidentemente das coisas que eu li à respeito,
dos filmes que eu vi também, mas uma pesquisa sistemática pra escrever a peça
nesse sentido não houve.
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Paulo Vieira, professor de Teatro e diretor
de “Mercedes”.
Foto: Rennan Ono
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Direto
do Microondas: O espetáculo teve o patrocínio do Edital FIC,
o Fundo de Incentivo à Cultura o qual você se referiu. Até que ponto esse
aporte foi relevante para a realização do espetáculo? Poderia ter sido feito
sem o edital?
PAULO VIEIRA: Que teria sido feito sem o edital, teria. A
grande vantagem do teatro, e eu comecei fazendo teatro dessa maneira, é que
você não precisa de grandes recursos para fazer um espetáculo. Obviamente que
se você tem recursos você melhora a qualidade da apresentação técnica e mesmo
dos materiais no seu espetáculo. Nesse sentido o FIC foi extremamente
importante, porque não era apenas a compra de material, mas o pagamento do cachê
para os atores, que se fosse de outra maneira não teria esse cachê, que não é
um cachê grande, não é um cachê alto. Se for verificar, na prática, não paga o
trabalho que se tem, mas que acaba sendo importante de qualquer maneira para a
melhor execução do espetáculo. Então, eu diria pra você que a contribuição do
FIC foi 100% importante, sem elas nós não teríamos cartazes, não teríamos
programas, não teríamos um cenário feito exclusivamente, não teríamos figurinos
como eles estão. Por exemplo, a Eulina, que faz a Dra. Mércia, assim como a
Suzy, ela usa dois figurinos: um figurino que vai até a cena da tortura, e esse
tem de ser tirado rapidamente e como ele não pode ser montado rapidamente
tivemos que fazer um figurino igual para cena posterior até o restante da peça.
A mesma coisa em relação ao figurino da Suzy, que é uma blusa de gola rolê, de
época, dos anos 60, 70, que na cena da tortura ela tira e coloca uma outra
blusa. O público não percebe que ela está usando outra blusa. [...] Essas
coisas implicam em gasto em, investimento, que poderíamos fazer de outra
maneira mas se tema a produção fica bem mais fácil de realizar. Pesquisa de
material também, não é qualquer pano que vai vestir, pra cada personagem eu
quis pesquisar o pano, o corte, o modelo, e tudo isso como patrocínio fica bem
mais fácil.
Direto
do Microondas: E também pra reafirmar o teatro como
atividade profissional, não é? As pessoas acham que teatro é uma espécie de
atividade transversal, que é também, mas
pessoas não conseguem ver teatro como uma atividade profissional, que
tem suas necessidades, que tem pessoas que também vivem de teatro.
PAULO VIEIRA: E te digo mais, eu considero que o teatro é
uma das artes mais difíceis de serem realizadas, diferentemente do cinema, cuja
a grande dificuldade no meu ponto de vista é mais o preço das coisas, do que a
realização mesma do filme. Um espetáculo como Mercedes, por exemplo, nós
ensaiamos durante seis meses, quatro horas por dia, todos os dias. Então é um
longo tempo, é desgastante, e cansativo pra caramba. Lógico que é prazeroso
também, do contrário ninguém aguentaria, mas quando a gente chega na estreia a
gente já chega no limite do cansaço.
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Sandro Alves entrevista Paulo Vieira, diretor
de “Mercedes”.
Foto: Rennan Ono
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Direto
do Microondas: Você falou que o fato que inspirou o
argumento do espetáculo foi a notícia de um carro que uma jovem recebeu como
parte de uma herança. Gostaria que você falasse sobre “Mercedes”, esse nome e
qual a simbologia dele para o espetáculo, porque, no contexto do espetáculo,
parecer ser não só um nome mas também um símbolo, um elemento que une as
personagens e assume várias representações.
PAULO VIEIRA: Quando eu comecei a elaborar o texto (do espetáculo), fiquei pensando “que
carro poderia ser esse?”. Então, me pareceu que o carro que tem uma forte carga
simbólica, até porque tem um nome feminino, seria um Mercedes. Aí sim houve uma
pesquisa de fato, para determinar esse nome. O que significa Mercedes, o que é
isso? Contextualizar isso dentro do Brasil, da América Latina. Que outras
Mercedes isso poderia me remeter? Remete a Mercedes Sosa, remete a Mercedes a
música da Janis Jopplin, que é um ícone da contracultura americana naquele
momento e, por extensão, da contracultura mundial também, uma música que ela
canta à capela. Então, parece meio improviso o momento em que ela canta
“Mercedes Benz”, parece meio irônico e ao mesmo tempo um elogio do mercado, do
automóvel; e ao mesmo tempo parece uma crítica ao consumo. Tem essas
ambiguidades na canção da Janis Jopplin. Então, tudo isso foi se somando para
compor uma ação da Mercedes que integrasse todos esses símbolos criando, no
final das contas, um símbolo maior para o sentido da Mercedes: é a personagem?
É a revolucionária? É um símbolo de fortaleza, de resistência, de consumo, um
ícone contracultural? No final das contas, como o deputado revela a filha (na peça), é o sentido de dar graças, de
agradecimento, de humildade de reconhecimento por um bem, pela própria vida.
MERCEDEZ – FICHA TÉCNICA
Direção e texto: Paulo Vieira
Elenco: Suzy Lopes, Nika Barros, Jorge Félix, Bárbara
Hellen e Eulina Barbosa
ÚLTIMAS APRESENTAÇÕES
DA TEMPORADA:
Sábado (15/02) às 19h
e 21h
Domingo (16/02) às
20h
Local: Teatro Lima
Penante, Avenida João Machado, 67,
Centro.
Por Sandro Alves de França